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sexta-feira, junho 10, 2005

Venda a sua alma

“compra-se alma. paga-se bem.”

lia-se perfeitamente a frase num pequeno anúncio de jornal. Fausto achou a proposta interessante. como nunca foi crente ou poeta, sempre achou a própria alma algo de grande inutilidade. Fausto tinha uma alma como quem tem um par de meias vermelhas com bolinhas azuis, presente de alguma tia gorda e daltónica. guardava a alma na gaveta das cuecas e poucas vezes tivera motivos para a tirar de lá. mas agora havia um: dinheiro.

desde que a proposta fosse boa, Fausto iria trocar a alma por uns cobres. poderia não ser o acto mais católico do mundo, mas Fausto não era católico, nem budista, nem protestante. a transação foi simples. a maquia era boa. bastou uma assinatura e o número do contribuinte. em minutos, Fausto era um homem desalmado.

Fausto nem perguntou o que iriam fazer da sua alma. era um assunto para ele pouco importante. saiu da loja com o bolso cheio notas e um grande sorriso estampado no rosto.

desde então Fausto prosperou. aplicou o dinheiro na bolsa e ganhou. com o lucro comprou uma empresa falida e transformou-a num grande negócio. Meteu-se nos mais arriscados projectos sem nenhum medo, pois quem não tem alma não teme. tornou-se num empresário de sucesso. deu entrevistas a todos os jornais do país, ficou famoso e cada vez mais vaidoso consigo mesmo.

um belo dia, estava Fausto no seu apartamento de três andares em Nova Iorque, quando a Morte chegou.

- bom dia, vim buscar a sua alma.
- dona Morte, a senhora deve ter se enganado no apartamento. já não tenho alma há muito tempo.
- o senhor não se chama Fausto Matias de Sousa?
- sim, é o meu nome.
- então não há engano algum. vocês mortais são realmente muito chatos. é sempre a mesma coisa quando eu chego: “é muito cedo”, “agora não, vou casar amanhã”, “justo hoje que o Olaria foi campeão?” sinceramente, não há pachorra para as suas desculpas. por favor, entregue-me a sua alma sem grandes resistências. tenho hoje uma agenda cheia. dentro de vinte minutos haverá um atentado no metro, ali pelos lados do Harlem, e só isso vai ser o suficiente para ocupar-me a tarde inteira.
- caríssima morte, já disse que não tenho alma alguma. vendi-a faz mais de trinta anos. se duvida, olhe aqui o recibo.
- hum... tanto? pagaram-lhe bem. já vi gente que vendeu a alma por muito menos.
- era uma boa alma, quase sem uso. praticamente não a tirava de casa. só tinha ido com ela uma ou duas vezes à igreja e mesmo assim nem rezei, eram casamentos.
- bem, o recibo parece-me verdadeiro. peço desculpa pelo incómodo. deve ter havido um erro. desde que instalaram os novos computadores lá no inferno, aquilo tem-se tornado um inferno, se me permite a redundância.
- não há problema. mas, já agora, uma curiosidade. se veio buscar a minha alma é sinal de que alguém ainda a tem e esse alguém irá morrer hoje. é possível saber quem é essa triste figura?
- sim, sim. posso usar o seu telefone?
- claro. está logo ali naquela mesa, por debaixo do Picasso falso.

a morte arrastou a sua foice até o telefone. fez a chamada. enquanto isso, Fausto fumava um charuto cubano. o apartamento foi tomado por uma cortina de fumo, tresandando a charuto e a enxofre.

- ora bem, senhor Fausto, já descobri o equívoco. na verdade, a sua alma pertence hoje a um famoso cientista, que mora do outro lado do Central Park.
- e ele vai morrer de quê?
- vai escorregar no sabonete e bater com a cabeça na banheira. vai ser uma grande perda. o tipo estava prestes a descobrir uma vacina para uma epidemia que irá alastrar-se pelo mundo dentro de dois ou três anos e que irá matar toda a população do planeta.
- toda a população?
- sim. vai ser uma trabalheira. o mundo vai ficar reduzido às baratas e aos desalmados que, como não têm alma, não podem morrer.
- somos muitos?
- imensos. só em Nova lorque há mais de dois milhões.
- pena. estou a ver que os engarrafamentos vão continuar.
- bom, tenho de ir. passar bem.

Fausto despediu-se da morte. foi para a varanda e pôs-se a olhar a cidade. estranha era a vida, pensou. pôs-se a reflectir no futuro atroz da humanidade. era trágico que só por uma questão de troca de uma alma morresse o tal cientista no seu lugar e, com ele, toda a esperança do mundo.

nesse exacto instante, Fausto avistou uma pequena barata ao pé de um jarro de plantas. olhou-a fixamente e percebeu que entre os dois havia coisas em comum. a mesma ausência de sentimentos e o mesmo destino: partilhar o planeta só porque eram representantes de duas espécies impuras.

Fausto foi tomado então por uma comoção. sentiu que precisava fazer algo. não podia aceitar o futuro que se avizinhava de maneira passiva. caminhou em direcção à barata e sem pestanejar tomou uma atitude que iria marcar todo o resto da sua eterna vida.

“Menos uma!”, gritou ao pisar a barata sem piedade.

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