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sexta-feira, julho 15, 2005

O Pato

ela era a rainha balzaquiana da teleculinária. ele apresentava o telejornal. ela conquistava as audiências da manhã com bolos fabulosos, pastéis e rissóis. ele ganhava a vida a falar com ar carrancudo sobre guerras, epidemias e defuntos. ela acordava cedo, depois dos desenhos animados. ele deitava-se tarde, nunca antes do fecho de emissão. ela era divorciada de Asdrúbal, o palhaço loiro e mudo, aquele que apresentava números sem graça no telecirco de domingo. ele tinha várias namoradas, incluindo a enfermeira chefe da série sobre médicos e a rapariga bonita da meteorologia.

os dois encontraram se por acaso num talk show noturno que debatia um tema qualquer obscuro. ela sentia-se só. ele, em plena meia idade, demasiado acompanhado. depois do programa foram tomar uns copos. ela falou do dia em que em frente às câmaras matou um pato. ele de como era amigo de secretários de estado. ela reparou que ele estava magro. ele de como ela ficava bem com aquele penteado. o empregado avisou que o bar ia fechar. ele fez questão de pagar a conta. ela convidou-o para jantar.

- olá, cheguei cedo?
- não. Entre e fique à vontade.
- e a sua amiga da SIC Mulher não veio?
- desistiu. algum problema do jantar não ser a três?
- prefiro assim. detesto multidões.
- o jantar está quase pronto.
- hum, que cheiro bom.. O que é?
- pato assado.
- estava a falar do seu perfume.
- ah... Chanel nº 5.
- mal posso esperar para prová-lo.
- calma. não vá rápido demais. há muito que não recebo um homem em casa.
- estava a falar do pato.

ele comeu como um rei e repetiu três vezes. ela bebeu demasiado vinho. ele revelou que estava cansado de apresentar o telejornal, que queria ser valorizado como um bom jornalista e não apenas mais um rosto bonito. ela não ouviu nada. estava concentrada naquela covinha charmosa que ele tinha no queixo. foram para a cama.

- foi bom para ti?
- sei lá, bebi demais. não penses que sou dessas.
- não penso nada. a noite foi óptima. há muito que não comia um pato como esse.
- a receita é da minha avó. o Asdrúbal não gostava
- ele é um palhaço.
- não fales mal do Asdrúbal que eu não gosto.
- estava apenas a citar a profissão dele.
- o Asdrúbal quando comia em casa nunca repetia.
- e além do pato do que mais ele não gostava?
- de mim.
- hum... posso repetir?

no dia seguinte ela estava de cabeça tão perdida que durante o seu programa ensinou a colocar pimenta numa receita de pudim flan. ele estava tão feliz que teve um acesso de risos enquanto lia a notícia da demissão de um ministro. ele passou a jantar na casa dela todas as noites. os sinais da paixão eram visíveis em ambos. ele cada vez mais gordo a apresentar o telejornal. ela com umas olheiras enormes em seu programa matinal. ele terminou com as outras namoradas. a rapariga bonita da meteorologia tornou-se numa triste. só falava de tempestades e de nuvens sombrias a sobrevoar o litoral. e a enfermeira chefe passou a deixar morrer um paciente atrás de outro.

um dia, ela foi surpreendida pela visita do Asdrúbal, o palhaço loiro e mudo. Asdrúbal, apesar do sorriso vermelho pintado na cara, chorava. dos seus olhos saíam esguichos de lágrimas. andava pelo apartamento a arrastar os seus longos sapatos, a derrubar coisas, a levar tombos involuntários. e a dizer, por gestos descoordenados, que estava arrependido e que queria voltar. ela, sensibilizada, perguntou se ele não queria ficar para jantar. fez um teste, assou um pato. asdrúbal comeu com prazer. repetiu seis vezes. e mais tarde na cama, idem.

- temos que terminar.
- o quê?!
- o Asdrúbal. ele pediu para voltar.
- aquele palhaço?
- a profissão dele não importa.
- mas quem falou de profissão? ele é um palhaço mesmo.
- não fales assim. estou confusa. acho que ele merece uma segunda oportunidade.
- não posso crer. mas o que ele faz por ti que eu não possa fazer?
- ele faz-me rir.

e foi assim que tudo terminou. sem os pratos saborosos que ela lhe fazia, ele voltou a emagrecer. cadavérico e feio, ganhou respeito e um prémio como jornalista do ano. casou-se com a rapariga da meteorologia, que desde então passou a só prever um bom tempo. ela abandonou o programa de culinária e passou a cozinhar apenas em casa. Asdrúbal, o palhaço loiro e mudo, pintou o cabelo de ruivo e passou a fazer números com imensa piada. a enfermeira chefe mudou se para uma telenovela venezuelana onde agora faz de freira. e o pato?

está óptimo, obrigado.

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